sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Dia do escritor


13 de outubro: Dia Mundial do Escritor e da Escritora. Eis uma atividade profissional que deve ser exercida, acima de tudo, com profundo senso crítico, compromisso com a valorização da leitura e com a difusão do livro. O exercício da escrita deve servir para lutar contra as injustiças, para eliminar as desigualdades sociais, para aproximar os povos e realçar a índole inconformista, revolucionária, amorosa e inclusiva das pessoas. 



terça-feira, 11 de outubro de 2022

Praias: era só o que faltava



Renato Muniz B. Carvalho

O Brasil é um país abençoado. Tem florestas incríveis, tem montanhas, cânions, orquídeas belíssimas, biodiversidade, cachoeiras, um povo lindo e acolhedor. O que mais? Tem… Ah, tem praias, muitas praias! Tem um litoral com cerca de oito mil quilômetros de extensão, com mais de duas mil praias, cada uma mais bonita que a outra, algumas são famosas no mundo inteiro e recebem milhares de turistas o ano todo. Praias extensas, praias escondidas, praias paradisíacas, praias de areia fina, boas para caminhar, para apreciar a paisagem. Se tem algo realmente democrático no país, além dos botecos, são as praias. Quando se juntam botecos e praias, a felicidade está completa.

 Essa felicidade pode estar ameaçada. Um dos burocratas de plantão apareceu com a ideia estapafúrdia de vender as praias. Não sei de onde tiram essas ideias mirabolantes. Será que eles não têm coisas mais importantes para fazer? Por que não cuidam da economia, do combate à inflação, da geração de empregos, do câmbio e deixam nossos sonhos em paz? Sim, o sonho da maioria dos brasileiros e brasileiras é um dia poder ir à praia, deitar-se na areia, curtir as ondas, levar a meninada para se divertir. Mas não, eis que surge o burocrata propondo a privatização das praias. Sim, você leu direitinho: vender nossas praias. Um dos argumentos é a má gestão das mesmas. Como assim? Talvez ele esteja se referindo aos dias nublados, aos dias de chuva, às ressacas… Tá, é preciso administrar isso. Como resolver? Não dá para viajar centenas de quilômetros e encontrar chuva na praia. Acaba o passeio.

 Má gestão? Talvez ele tenha se referido à ausência de salva-vidas. Não, eles estão lá, atentos, solícitos, salvam vidas. Será que ele se referiu à carência de bares, de quiosques, banheiros públicos? Isso nunca foi problema para nós. Em qualquer praia, da mais badalada à mais distante, sempre existirá um barzinho que vende água de coco. Então deve ter se referido à aparição de tubarões em algumas praias, assustando os banhistas. Será que faltou combinar com os tubarões para eles não se aproximarem da orla? Faltou diálogo com os peixes? Será a presença de águas-vivas? Poucas conchinhas? Som alto nas barracas, muitos vendedores de bugigangas? Será que algum desses itens é suficiente para caracterizar má gestão e justificar a venda?

Desculpem a ironia, mas observem a seguir um exemplo do que alguns consideram boa gestão. Vendidas as praias, deve-se fazer um imenso alambrado, ok? Depois de cercadas, limitar o acesso, construir guaritas, cobrar ingressos, rever as concessões dos quiosques, estabelecer regras, definir quais as vestes permitidas, qual o tempo de uso, as práticas esportivas autorizadas, determinar o tamanho e formato dos guarda-sóis, a metragem permitida para cada família na faixa de areia, exigir licença para uso pedagógico dos castelinhos de areia, limites para se cobrir de areia etc. As cadeiras devem ser alugadas. Ah, não pode mais entrar com cerveja, bolacha ou biscoito nem sorvete. Só faltava essa! 

Muda mundo

Renato Muniz B. Carvalho

 Na fazenda do meu avô, faz tempo, parecia que o mundo ia ser sempre igual. Ano após ano, a sensação que predominava era a de que tudo ficaria do mesmo jeito, indefinidamente, nada mudaria ou mudaria muito pouco. Essa era a percepção predominante. A alternância entre dia e noite, apesar das alterações óbvias entre claro e escuro, entre criaturas diurnas e noturnas, entre temperaturas desiguais, entre a hegemonia do sol ou da lua, isso não contava no rol das modificações consideradas. Mudanças decorrentes de variações nas estações: calor e chuva no verão, frio e seca no inverno etc., não eram entendidas como tal, mas como situações externas ao mundo, e se repetiriam de forma contínua séculos afora. Ou seja, o normal era um mundo fixo, rígido, um mundo que seria invariável, apesar da passagem do tempo.

 Vez ou outra caía uma árvore, os córregos enchiam e transbordavam, pontes desabavam, incêndios queimavam os pastos, mas essas também eram ocorrências não computadas no universo das transformações significativas para quem se dispusesse a olhar o mundo com um pouquinho mais de atenção. Aliás, não perceber que o mundo mudava e não fazer a devida leitura da realidade era habitual para muita gente. Para certas pessoas, tanto no meio rural quanto nas cidades, as perspectivas eram bastante limitadas. Omissões, deturpações, interesses particulares e visões dominantes dificultavam ou impediam a leitura crítica do mundo. Isso quando as leituras não apareciam prontas, mastigadas, sem grandes questionamentos. A sociedade patriarcal determinava quais leituras aceitar e sua interpretação. O que escapasse para além das estreitas margens conhecidas era punido, recusado e censurado.

 Eleições eram comandadas por salientes chefes locais, que indicavam em quem votar. As trajetórias educacionais e as carreiras profissionais eram limitadas. Uma vez escolhida a profissão, isso devia valer para o resto da vida. Casamentos também: “até que a morte os separe”. Aos mais jovens que ousassem questionar a ordem estabelecida se dizia que quando fossem mais velhos desistiriam de “mudar o mundo”. Esta era a epígrafe – ou o epitáfio – do conservadorismo.

 A morte era um acontecimento fora do padrão no contexto vigente. Dificilmente isso era entendido como algo que fazia parte da vida, daí seu impacto, sua ocultação dos pequenos, seu caráter trágico, excepcional, místico.

 Mas o mundo mudava, ora menos, ora mais, às vezes de forma mais lenta ou mais rápida. O fato é que surgiam músicas novas, ideias novas, jovens lideranças despontavam no cenário político e cultural, antigas concepções se desmanchavam no ar, a ciência abria caminhos decisivos e a arte desembaraçava horizontes.

 Embora as ameaças de retrocesso não desapareçam por completo, o processo histórico empurra as sociedades rumo ao futuro. E isso não costuma acontecer sem conflitos. Velho e novo se chocam mais cedo ou mais tarde. Daqueles tempos adolescentes, restou um aprendizado: o mundo muda, é inevitável, e vai continuar mudando.


Crônica publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67

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