domingo, 21 de agosto de 2016

Ela sabe o caminho






Ela sabe o caminho

Renato Muniz B. Carvalho


Não tem coisa melhor do que uma tarde chuvosa para atualizar a prosa e, de quebra, ouvir e contar boas histórias. Assim foi, certa vez, na fazenda do meu avô. Caiu uma chuva tão forte que o jeito foi todos interromperem o que estavam fazendo e se abrigarem sob o telhado acolhedor da cocheira. Choveu bastante e a enxurrada grossa desceu com vontade do alto dos morros, uma enxurrada escura por conta do solo desfeito, dos torrões desagregados e da lama carregada de terra, folhas e galhos. A umidade era tanta que já não adiantava pensar em fazer mais nada naquele restinho de tarde. Os animais que estavam nos currais foram soltos e apenas alguns cavalos permaneceram arreados, porque os cavaleiros responsáveis por eles precisavam voltar para casa.
A chuva, que começou por volta de quatro horas da tarde, não deu trégua. O entardecer veio rápido e a água não parou mais de pingar das calhas do telhado. Nós percebemos que o Bastiãozinho ficou incomodado, não desgrudava o olhar do horizonte, bastante ansioso.
À medida que escurecia lá fora, a prosa escasseava ali dentro. Aos poucos, cada um foi se despedindo e saindo para enfrentar a chuva fria. Uns moravam mais perto e saíram a pé mesmo, correndo pra ver se não se molhavam além do necessário. Outros saíam resignados, sem pressa, sabendo que chegariam encharcados em casa; só um bom banho e a beira do fogão de lenha para esquentar.
Por último, ficamos o Bastiãozinho, o Miguel, responsável por fechar os bezerros até a próxima ordenha, o Sr. Antônio, que morava na sede, onde cuidava da horta e do jardim, e eu, interessado nas conversas e nos causos. Com exceção do primeiro, os outros dois moravam ali pertinho.
No início da chuva, a mulinha alazã do Bastiãozinho tratou logo de se abrigar sob o beiral do telhado da cocheira e por lá ficou, esquecida, conformada. Ela é que o levaria pra casa, que ficava mais distante, pra lá da curva do Córrego da Capivara. Mas o fato é que ele estava inquieto, amuado. Tirava o canivete da bainha, afinava um graveto, cutucava as unhas e olhava com tristeza o anoitecer. Podia ser chateação com a chuva, com o serviço, por causa de algum ressentimento, que ele não nos contou, como podia ser também um aborrecimento qualquer. Pensei que o problema dele era sair com a mulinha no escuro, escorregar no barro, passar no corguinho cheio... Percebendo nossa preocupação, o Bastiãozinho finalmente desabafou: a Dona Auristela não estava em casa, tinha ido à cidade para uma consulta, e recomendou que ele recolhesse a roupa no varal antes de sair, mas ele esqueceu. Ia receber uma bela bronca. E quanto à mulinha e a volta pra casa? Aí ele se virou, animado, e disse: “Uai sô, ela sabe o caminho, de cor e sarteado!”.

Publicada no Jornal da Manhã, em 14/08/2016.



quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Os livros e o cinema mudo



The General (1926), com Buster Keaton

Renato Muniz B. Carvalho

No final da década de 1920, o escritor Monteiro Lobato tornou-se adido comercial do Brasil nos Estados Unidos. Nomeado pelo presidente Washington Luís, em 1927, o escritor mudou-se de mala e cuia para os States. Foi paixão à primeira vista. Seus relatos, seus passeios, sua curiosidade com as rodovias e os arranha-céus podem ser lidos no volume “América”, onde o autor, em companhia de um inglês imaginário, Mr. Slang, o “inglês da Tijuca”, conta as visitas que faz às indústrias, aos museus, às bibliotecas e aos grandes prédios das cidades americanas. O então funcionário da embaixada brasileira encanta-se com o rádio, o telefone, o cinema e as belas mulheres americanas. Encanta-se, sobretudo, com Nova York, com a agitação da cidade que crescia como nenhuma outra no mundo no final da década, até que veio o “Crack da Bolsa”, em 1929. Foi no capítulo em que relata sua visita, e seu deslumbramento, à Biblioteca do Congresso, em Washington, que Lobato escreveu uma das suas mais célebres frases: “Um país se faz com homens e livros”. Exaltando dois grandes personagens da história norte-americana, Washington e Lincoln, a quem chama de heróis, vai à grande biblioteca e diz que é nos livros que está fixada toda experiência humana. Confessa até que ficou meio tonto diante de tanta grandiosidade.
“América” é um livro gostoso de ler, para ser apreciado em qualquer lugar, seja no ônibus ou numa cadeira de praia à sombra de uma amendoeira. Em nenhum instante, mesmo referindo-se às extensas paisagens norte-americanas e às suas maravilhas, o escritor se esquece do Brasil. Faz comparações, análises e prognósticos. É um observador crítico, mordaz. Comenta as eleições, o voto, os costumes, as universidades, a arquitetura, ainda que, em alguns trechos, o deslumbre ofusque certos detalhes.
No capítulo VIII, há uma observação curiosa que vale a pena ser mencionada. O escritor, ao comentar o ritmo intenso das inovações, do progresso ocasionado pelo uso crescente de novas máquinas, espanta-se com a revolta dos músicos que estão perdendo o emprego por causa do cinema falado. Eles travam uma verdadeira guerra contra o que chamam de “música em lata”, contra o desemprego, contra a novidade que sela o destino do cinema mudo. O escritor espera, entretanto, que a humanidade dê um passo à frente.
Quase cem anos desde que ele escreveu isso, mas os dilemas são semelhantes. A questão que me intriga é: o que diria o escritor diante de um e-book? Ele, que foi o grande incentivador da indústria editorial no Brasil do século XX, o que pensaria se tivesse de ler um livro num suporte eletrônico?
O cinema não perdeu sua essência com o som, com a cor, com outras inovações tecnológicas. Creio que as boas histórias, igualmente, não vão perder seu valor e seu significado com as novas mídias. A conversa é longa, sujeita a muita reflexão, mas eu me pergunto: o que vai acontecer com o livro físico e com o digital daqui para frente? Eu morro de vontade de saber o que Lobato diria? E você, o que pensa disso?

Monteiro Lobato

 América, de Monteiro Lobato

Metropolis (1927), de Fritz Lang 

O nascimento de uma nação (1915), de D. W. Griffith

Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin 


Gloria Swanson, a grande atriz do cinema mudo norte-americano

* Crônica publicada no Jornal da Manhã,  31 de julho de 2016